sábado, 17 de agosto de 2013

CACHAÇA


CACHAÇA - BRAZILIAN RHUM - A MARVADA 




Se for dirigir, nem pense nela. Se não for, talvez seja a hora de conhecer melhor (devagar, é claro…) essa bebida que nasceu com o Brasil há 500 anos e agora apronta uma revolução. Amada e maltratada, a cachaça cansou de ser só “a marvada”, o “brazilian rhum”. E foi buscar selos de Indicação Geográfica que atestam sua indiscutível nobreza para exigir ser nada menos que a primeira-dama das bebidas brasileiras. Nessa empreitada, moderação só na hora de beber.
Com certo atraso, e lá se vão quase 500 anos, o Brasil está descobrindo a cachaça. E agora quer que o mundo a conheça também. Poucos produtos carregaram a carga simbólica (para o bem e para o mal) de ser algo intrinsecamente brasileiro, nascido, fermentado e destilado quando o próprio País nascia, crescia e construía sua identidade.
As histórias do Brasil e da cachaça são indissociáveis. Estão tão entrelaçadas que só agora, quando o País redescobre seus produtos, sua cozinha, a cachaça vem se desvencilhando de estigmas e está entrando com tudo no radar.
No ano passado, Salinas, uma das regiões produtoras mais importantes do País, recebeu do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) o selo de Indicação Geográfica, uma garantia de que métodos tradicionais de produção continuam a ser utilizados. A cidade de Paraty foi a primeira região a receber o selo, em 2007.
A partir deste ano, a cachaça também entrará no mercado americano ostentando no rótulo seu nome original: cachaça. Até o ano passado, quando o acordo entre Brasil e Estados Unidos foi assinado, a bebida recebia a escalafobética denominação de “brazilian rhum”.
Com o acordo, acredita-se que os impostos cobrados pela cachaça no mercado americano terão uma redução de 40%. Segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), os produtores brasileiros têm potencial para ganhar uma grande fatia do mercado americano (atualmente, o maior importador de cachaça é a Alemanha).
De olho nos Estados Unidos, uma grande marca contratou como garoto-propaganda o ator John Travolta, para sambar e tomar cachaça nas areias cariocas.

Antes de tudo, porém, é importante entender o que é cachaça. Toda cachaça é uma aguardente, mas nem toda aguardente é uma cachaça. Aguardente de cana é um destilado feito com mosto fermentado de cana-de-açúcar ou destilado simples de cana-de-açúcar com graduação alcoólica entre 38% e 54%. Cachaça é produzida unicamente no Brasil, feita com mosto fresco fermentado obtido do caldo de cana-de-açúcar e tem graduação alcoólica entre 38% e 48%. E o rum? Rum não tem nada a ver com essa história. Embora seja parente da cachaça, é feito com melaço da cana fermentado e destilado. Já pinga é só um dos mais de 700 sinônimos (muitos deles engraçadíssimos, alguns impublicáveis), pelos quais a cachaça é conhecida.
Em um cenário com estimados 40 mil produtores e 5 mil marcas registradas, pouquíssimos Estados da federação não produzem cachaça – e eles estão na Região Norte do Brasil. Cerca de 44% da produção nacional vem de São Paulo. Ceará e Pernambuco produzem 12%, enquanto Paraíba, Minas Gerais e Rio de Janeiro, 8%. O Paraná fica com 4%. Em Minas, quase 50% de toda a produção de cachaça é de alambique.
O mundo da cachaça é vasto e pouco explorado. Ainda existem mais perguntas que respostas. Essas, certamente, virão com estudos e pesquisas que dirão quais as melhores madeiras para envelhecê-la (mais de 30 já são usadas) e o que cada uma delas confere à bebida. É possível falar em terroir para cachaça? Muitos acreditam que sim, outros categoricamente afirmam que não, mas não há argumentos suficientemente sólidos. Por enquanto, essa é uma das muitas questões que pairam no ar e só começarão a ser respondidas depois de muita pesquisa e estudo.
Enquanto as respostas não vêm, não é preciso deixar de beber. Por isso, o Paladar preparou um bê-á-bá da cachaça. Leia sem moderação:

A HISTÓRIA DA CACHAÇA
As primeiras mudas de cana-de-açúcar, planta natural do Sudeste Asiático, chegaram ao Brasil em 1531, com a expedição de Martim Afonso de Sousa pelo litoral paulista. O colonizador português fundou a Vila de São Vicente e foi ali que mandou construir os primeiros de açúcar.
Na bagagem dos portugueses também vieram alambiques de destilação, que logo passaram a ser usados para produzir o ancestral da cachaça, o “vinho da terra”, também conhecido como “jeribita”, feito com o caldo da cana-de-açúcar. Não há como saber com precisão, mas é muito provável que ali, no litoral paulista, tenham sido destiladas as primeiras cachaças.
Então conhecida como vinho da terra, logo a bebida ganhou nome próprio: cachaça. O batismo vem da palavra espanhola cachaza (vinho inferior) e, vejam só, já nasceu estigmatizada.
Para todo gosto. Clarinha, amarelinha, mais escura, pura, mista: o que se imaginar em termos de cachaça é provável que já exista.
De São Vicente, o cultivo e a fabricação chegaram a Paraty e a cidade virou sinônimo de cachaça. “Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati”, já cantava Carmen Miranda sobre o folião de Camisa Listrada, na canção de Assis Valente.
Não demorou nada para a cachaça cair no gosto popular. Antes bebida de índios e escravos, se tornou um importante negócio, prejudicando os lucros da metrópole (parte da cana que antes virava açúcar começou a virar cachaça) a ponto de Portugal resolver proibir, pela primeira vez em 1649, a produção do vinho da terra em todo o País.
A proibição não adiantou. A cachaça continuou sendo produzida e, em 1800, já era até moeda de troca no comércio de escravos. Mas talvez venha daí a expertise na fabricação clandestina que Câmara Cascudo descreveu em História da Alimentação no Brasil. “Alguns trabalhavam durante a noite, madrugada, com a destilação, os alambiques escondidos e disfarçados no mato como princesa encantada”.
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Cabeça, coração e cauda
Essas três palavras identificam diferentes frações durante o processo de destilação da cachaça de alambique. A cabeça surge logo no início da destilação. Costuma abarcar 5% do volume total destilado e tem alta concentração de álcool (por volta de 60%) e alto teor de metanol, acetaldeído (vilões da famosa dor de cabeça) e acetato de etila. A cabeça pode ser transformada em etanol ou ser usada como desinfetante. Não é para beber, ou, ao menos, não deveria ser.
O coração compreende 80% do vinho destilado e tem graduação alcoólica entre 60% e 40%. É a melhor parte do destilado, da qual se faz a boa cachaça.
Já a cauda costuma ser os 15% restantes da destilação. Tem graduação alcoólica entre 38% e 15% e também pode ser transformada em álcool. As colunas de destilação, usadas no processo industrial da cachaça, não separam essas frações.
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Para entender o rótulo
Só podem exibir no rótulo a classificação Envelhecida, Premium e Extra Premium cachaças que tiveram tonéis lacrados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Envelhecida: Deve ter, no mínimo, 50% de cachaça envelhecida em madeira com capacidade máxima de 700 litros, por pelo menos 1 ano.
Premium: É composta por 100% de cachaça envelhecida em madeira, com capacidade máxima de 700 litros, por no mínimo 1 ano.
Extra Premium: Tem 100% de cachaça envelhecida em recipiente de madeira, com capacidade de 700 litros, por no mínimo 3 anos.

Prata, Clássica e Tradicional identificam a cachaça sem alteração na coloração após a destilação. Podem ter sido armazenadas em tonéis de madeira ou não.
Ouro é a classificação dada a cachaça armazenada em madeira com alteração na cor.

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Qual é a melhor para caipirinha? 

Contrariando o senso comum, o bartender Jean Ponce, do restaurante D.O.M., acredita que a melhor cachaça para fazer caipirinha será sempre a melhor cachaça que você tiver à mão. Diz que essa pergunta não é simples. “Vou contra algumas regras preestabelecidas, como a ideia de que cachaça envelhecida não combina com limão e açúcar. Isso não vale para todas – as envelhecidas em amburana não combinam mesmo com limão, mas em bálsamo e carvalho, sim. Gosto de caipirinha com cachaça envelhecida de 3 a 10 anos em tonéis de bálsamo. É espetacular”.
Entusiasta da cachaça, Ponce mantém 12 rótulos no bar do D.O.M. “Temos bebidas de várias partes do mundo, mas sempre que sobra espaço na prateleira, acrescento mais uma cachaça”, diz. Para fazer uma boa caipirinha com cachaça envelhecida, ele sugere a Serra das Almas, da Chapada Diamantina, e a Encantos da Marquesa, de Taboeiras, cidade próxima à Salinas.
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Essa tem cheiro de ressaca…
Antes de tomar um gole, aproxime o copo do nariz e concentre-se nos aromas. O perfume de uma boa cachaça é agradável. Se não for, a bebida tem defeitos – e os defeitos e contaminações são bem fáceis de identificar. Isso porque alguns aromas funcionam como verdadeiros arautos de uma ressaca daquelas. Os problemas de contaminação em cachaças de alambique, além da mistura das frações cabeça, coração e cauda nas cachaças industriais, costumam ser os responsáveis por aquela explosiva dor de cabeça – mesmo que se tenha bebido com moderação.
No destilado de cana, determinados compostos químicos em excesso cheiram mal e são bem perceptíveis. Os aromas que prenunciam a ressaca são maçã podre (acetaldeído); vinagre (ácido acético); cola (acetato de etila); sabão (ácido decanóico sulfúrico); enxofre (dióxido de enxofre); ovo podre (sulfeto de hidrogênio); cebola (presença de etanotiol), couve-flor (disulfereto de dimetilo) e cavalo (etil fenol). Tudo isso é defeito. Não cabe no copo do bom bebedor de cachaça.
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Para degustar (sem fazer biquinho)
Uma breve análise visual e aromática pode dizer muito sobre a bebida à mesa. É assim com vinho, com cerveja e com a cachaça:
Olhe. No copo, observe o rosário, as lágrimas. Uma cachaça bem destilada é límpida, não pode ser turva.
Cheire. Os aromas de uma boa cachaça são agradáveis, alcoólicos sim, mas sem serem agressivos.
Beba. Uma bebida bem destilada, mesmo com altas graduações alcoólicas, não é violenta e não desce arranhando a garganta. Para ter uma percepção ainda maior de aromas, corpo e álcool na boca, faça o seguinte: tome um gole, feche os lábios e expire pelo nariz. Os aromas e o sabor ficam mais perceptíveis assim. Ah, e saúde!




MAPA DAS MINAS


Faz três anos que a cachaça começou a ser colocada no mapa – mais exatamente no Mapa da Cachaça. O projeto que está mapeando a produção da bebida no Brasil nasceu depois que o produtor multimídia Felipe Jannuzzi leu Vinho e Guerra (2002), de Don e Petie Kladstrup, que conta as estratégias dos vinicultores franceses para esconder dos nazistas suas melhores garrafas. Na época, Felipe e sua sócia, Gabriela Barreto, queriam contar uma história bem brasileira.

Assim, nasceu, em julho de 2010, o Mapa da Cachaça, inicialmente como repositório online de vídeos feitos pela dupla sobre produtores e alambiques (os alambiques são situados em um mapa do Brasil). O projeto cresceu, ganhou fichas detalhadas sobre cachaças, receitas, álbum de rótulos, indicações de bares e lojas, agenda de eventos. E tudo é colaborativo, ou seja, todos podem, além de consultar, contribuir com o conteúdo. Já são mais de 600 bebidas cadastradas, entre cachaças e licores, e 300 produtores.
O projeto chegou também ao mundo offline. Em parceria com chefs, produtores e sommeliers, a dupla promove degustações. Depois de lançar um CD com músicas instrumentais inspiradas nos rituais da bebida, estão trabalhando em uma série para um canal de tevê pago e um guia dos melhores lugares para beber caipirinha nas cidades sede da Copa do Mundo.

PINGA ATÉ NO NOME
Paraty sedia um dos mais antigos festivais de cachaça do Brasil – o Festival da Cachaça, Cultura e Sabor de Paraty. Em 2013, será sua 31ª edição, que começa dia 15/08 quinta e vai até o dia 18/08 domingo. O evento já se chamou Festival da Pinga, mas hoje engloba outros elementos da gastronomia paratiense. No ano de 2013 o público poderá provar, por exemplo, espetinhos de cana-de-açúcar e queijos produzidos na região. Na época da colônia, a palavra “parati” já foi sinônimo de cachaça. Mais tarde, virou música interpretada por Carmen Miranda. A cidade chegou a ter 160 engenhos de aguardente no século 18. Desses, cinco funcionam até hoje, fazendo a mesma bebida de 200 anos atrás. Atualmente, há sete produtores de cachaça na cidade. A compra da caneca do evento (R$ 10) dá direito a uma dose. Depois, as doses são pagas separadamente. Haverá uma tenda de hidratação, com sombra e água fresca, para aqueles que exagerarem na degustação.

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Fonte: Estadão/Paladar
(Cíntia Bertolino, Carla Peralva, Taisa Sganzerla)
(Fotos: Tiago Queiroz, Filipe Araujo)





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